Transescalar é uma palavra interessante. Ela pode significar a passagem de uma escala para outra, isto é, um deslocamento de grandezas, como também a negação da própria escala, a recusa em aceitar seus próprios limites físicos. É também o termo que Pedro Varella usa para descrever a prática do gru.a (grupo de arquitetos), escritório com sede no Rio de Janeiro do qual é sócio juntamente com Caio Calafate. Apoiado num tripé formado por projeto, ensino e pesquisa, o gru.a realizou um conjunto relevante de obras que lhe rendeu reconhecimento dentro e fora do Brasil em pouco mais de dez anos de trabalho.
Nomeado ao Mies Crown Hall Americas Prize (MCHAP) 2022 e ao DÉBUT da Trienal de Lisboa 2019, o gru.a também tem no portfólio dois troféus de primeiro lugar no Prêmio Arquitetura Tomie Ohtake AkzoNobel (2015 e 2019), além de premiações em concursos de projeto. Mais recentemente, em 2022, integrou a lista de melhores Novas Práticas do ArchDaily por um trabalho baseado na economia de recursos que tensiona os limites do campo convencional da arquitetura e reivindica a esta a possibilidade de ser lida como arte.
Conversamos com os sócios sobre a origem do escritório, seu trabalho transescalar e a importância das junções e detalhes em suas obras. Leia a entrevista:
Romulo Baratto (ArchDaily): Como vocês se conheceram e por que criaram o gru.a?
Pedro Varella: A história do nosso encontro remete à nossa infância. Estudamos juntos na escola, desde os cinco anos de idade. Fomos amigos durante toda a infância e adolescência e acabamos cursando arquitetura. Eu na UFRJ e o Caio na PUC. No final da faculdade, começamos a trabalhar juntos em concursos de estudantes e outros pequenos projetos que iam surgindo, até que em 2012, junto com outros dois arquitetos — o Sergio Garcia-Gasco e a Fabiana Araújo — ganhamos um concurso grande para o edifício acervo da Fundação Casa de Rui Barbosa, aqui no Rio de Janeiro. A partir desse momento, decidimos abrir formalmente o gru.a.
Caio Calafate: O Pedro e o Sérgio se conheceram trabalhando no Pavilhão Humanidade2012, na equipe da Carla Juaçaba. Eu colaborava com outros escritórios, como o Fábrica Arquitetura. A Fabiana Araújo, que hoje tem um escritório chamado Ateliê de Arquitetura, colaborou nesse projeto para o edifício acervo e depois em outros projetos. Desde que o Sérgio voltou à Europa, em 2016, seguimos nós dois como sócios-diretores do gru.a. Temos outros dois sócios no escritório, a Ingrid Colares e o André Cavendish, além de estagiários e colaboradores.
RB: O trabalho de vocês abrange muitas escalas, indo de instalações efêmeras a concursos para obras de grande porte. Gostaria de ouvir primeiro sobre a experiência de vocês com os concursos, como este que o Pedro comentou.
CC: O concurso para o anexo da Casa Rui Barbosa foi o mais relevante da nossa história. Por termos vencido, mas também por ser um projeto inicial para o escritório, num momento em que decidimos criar oficialmente o gru.a. Além dele, fizemos outros concursos que gostamos muito, de escalas diversas. O concurso do MIS Pro, aqui no bairro da Lapa no Rio de Janeiro, em que ficamos em segundo lugar. Também ficamos em segundo lugar no concurso para a orla do lago Paranoá, em Brasília — talvez a maior escala com a qual já trabalhamos. Fizemos um trabalho muito bonito não apenas em termos de desenho de arquitetura e espaço urbano, mas desenho político. Depois fizemos o concurso para o Sesc Limeira, em colaboração com o Estúdio Chão e o Matéria Base, em que ganhamos menção honrosa.
PV: Embora os concursos sejam uma grande oportunidade para quem está começando e também uma forma de mobilizar o debate público, eles são, por outro lado, um risco financeiro muito grande para o escritório. Ou você tem condições de bancar uma equipe para elaborar o concurso, ou você é jovem o bastante para produzir todos os desenhos. Ou você tem força de trabalho própria para realizar, ou você tem poder financeiro para contratar profissionais. Neste momento nós estamos no limbo, não temos tanta disponibilidade para fazer sozinhos, nem tantos recursos para investir numa equipe.
RB: Saltando para o outro lado, parece que é na pequena escala que o trabalho de vocês se destaca ainda mais. Não falo apenas das instalações mais reconhecidas, mas, de modo geral, parece que vocês gostam de trabalhar nessa escala — e isso transparece nos projetos, sobretudo nos detalhes. Entendemos que aquilo não é apenas arquitetura, mas também sabemos que aquilo é obra de arquitetos, pela atenção aos detalhes, aos encaixes, junções, materiais… Poderiam falar um pouco sobre isso?
PV: Instigante seu comentário. Acho que não existe uma preferência pela pequena escala, mas há um esforço transescalar em nosso trabalho. Ou seja, consideramos que o projeto de um guarda-corpo pode levantar temas tão instigantes quanto um grande edifício ou um projeto urbano. Aprendemos isso muito cedo, com nossos primeiros trabalhos. Um exemplo é a intervenção no térreo do Edifício Caledônia no Parque Guinle, de Lucio Costa. A princípio, era um trabalho pequeno sem grandes possibilidades de reflexão, mas transformamos aquilo na coisa mais importante das nossas vidas naquele momento.
O projeto deveria ser muito simples — uma reforma de interiores de uma portaria —, mas conseguimos transformar essa encomenda banal em um tema de pesquisa e reflexão que carregamos até hoje.
Em pouco mais de dez anos, conseguimos realizar mais trabalhos de pequena escala. Espero que daqui há dez anos a gente volte a conversar e possamos retomar este tema usando exemplos de média e grande escala construídos com o mesmo esmero e atenção aos detalhes e junções.
RB: Eu espero que a gente se fale antes disso!
PV: É, não precisa tanto. Sabemos que a arquitetura exige tempo, e também presenciamos uma crise política, financeira e social violenta em nosso país. Os trabalhos de grande escala se tornaram escassos nesse período. Esses trabalhos de fronteira, que articulam os campos da arquitetura e das artes, se apresentaram como uma alternativa de realização para a gente. Uma espécie de plataforma a partir da qual podíamos pensar em temas que nos instigassem. Quase uma alternativa à frustração de não poder realizar projetos públicos de grande escala. Uma alternativa não menos nobre, claro.
Portanto, não existe uma predileção pela pequena escala. Mas, ao contrário disso, existe um profundo esforço e desejo de trabalhar de uma maneira transescalar, buscando entender mesmo em um grande trabalho a importância das junções entre as partes, por exemplo.
Vou abrir um parênteses para falar um pouco sobre a ideia de junção. Existe uma preocupação de modo geral em nosso trabalho em projetar e construir a partir de certa economia de recursos. É uma posição ideológica e política frente à vida e à arquitetura. Isso não significa construir precariamente, ou de uma forma menos importante; quer dizer tentar alcançar os melhores resultados com o mínimo de matéria, esforço e energia possíveis.
Essa ideia aplicada a projetos de curta duração — como o Cota 10 ou A praia e o tempo — sugere uma tática de montagem. Isso pressupõe técnicas e sistemas construtivos que podem ser rapidamente montados e desmontados. Esses sistemas dão grande ênfase às junções, porque de fato são essas junções que permitem que eles sejam montados e desmontados. Daí nosso esforço em pensar, desenhar e extrair questões amplas a partir das pequenas junções e materiais.
CC: A escala é, sem dúvida, uma questão. Há um grupo de trabalhos do escritório, no qual o Pedro trabalha de forma autoral, que toca a fronteira da arte e da arquitetura. Em alguns deles eu colaboro, o escritório também participa elaborando os detalhes e a parte técnica, mas de modo geral são encabeçados pelo Pedro. Mas há outro conjunto de trabalhos de curta duração que não estão exatamente na fronteira da arte com a arquitetura. Por exemplo, os projetos de expografia, dos quais se destaca o trabalho para o Sesc 24 de Maio, para a exposição Raio que o parta: ficções do moderno no Brasil, feito em colaboração com a arquiteta Juliana Godoy e que contou com um trabalho curatorial muito competente. Esse é um tipo de trabalho que temos feito bastante e de forma contínua. Estamos começando uma agora no Museu de Arte do Rio (MAR), fizemos uma ano passado no Galpão Bela Maré, a exposição do Jarbas Lopes também no MAR no ano passado. Então, temos mantido uma sequência nesse tipo de trabalho de curta duração.
Ainda lidando com arquiteturas efêmeras, mas com um tema um pouco diferente, estamos colaborando pela terceira vez com um festival de música aqui no Rio, que tem um público grande. É um projeto de arquitetura em que elaboramos desde a implantação do evento, palcos, todas as áreas técnicas e funcionais, mas também entramos na escala da cenografia.
Não temos preferência por trabalhos de curta, média ou longa duração. Cada projeto tem suas qualidades e interesses. Gostamos dos trabalhos que são executados e montados rapidamente porque vemos o processo acontecer. Por outro lado, trabalhos mais lentos, como um projeto de intervenção em patrimônio no interior do Rio de Janeiro que durou dois anos, oferecem um tempo valioso para pensar o desenho e envolvem uma série de outros projetos complementares. Não temos uma preferência por um ou outro, mas buscamos encontrar as questões em cada demanda — quando entendemos que é uma demanda que pode gerar questões produtivas para nosso pensamento de arquitetura.
RB: Vocês dois são arquitetos, mas têm formações complementares diversas e ainda atuam na área acadêmica. Como esses interesses e desvios dialogam com a prática arquitetônica do gru.a?
CC: O escritório tem como base um tripé composto por ensino, pesquisa e projeto. Nós dois nos formamos arquitetos, ingressamos no mestrado, e depois começamos a lecionar — prática que mantemos até hoje. E, assim como o ensino, a pesquisa também permeia nossa prática: minha tese de doutorado, que explora a ideia de pensar o chão como um atlas, está muito vinculada a essa fronteira entre arquitetura, design, antropologia e filosofia. Esse tripé nos interessa muito: as pesquisas entram no escritório, as práticas do escritório reverberam na forma de ensinar e também nas pesquisas, isso amalgama as formas de atuar no campo da arquitetura.
PV: Cada um tem uma formação pessoal, e isso é particular, mas é interessante como cada um de nós traz isso para o debate. Eu me sinto quase um colaborador da tese do Caio — a gente discute, às vezes eu indico bibliografias… É muito bacana como essas experiências pessoais afetam o método de trabalho que é coletivo.
Em paralelo à graduação de arquitetura, frequentei a escola de artes visuais do Parque Lage. Houve momentos em que passei por uma confusão identitária, mas hoje me considero um arquiteto e me apresento como arquiteto, embora trabalhe no ambiente da arte também. Faço isso como uma maneira de reivindicar à arquitetura a possibilidade de ser lida como obra de arte; não o contrário, tendo que me deslocar para o campo da arte. Prefiro ficar com o pé no campo da arquitetura e reivindicar as ferramentas da arte como possibilidades dentro do campo de produção da arquitetura.
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